8.2.10

"EU SEI, MAS NÃO DEVIA"


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.

E porque não tem vista logo se acostuma a não olhar
para fora. E porque não olha para fora, logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas logo se acostuma a
acender cedo à luz. E à medida que se acostuma, esquece
o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado
porque está na hora.

A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o
jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da
viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir
pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no
telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser
visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o
de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com
que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a
saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se
cobra.

A gente se acostuma à poluição.

Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às
bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai
afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma
revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e
sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente
senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se o trabalho está duro à gente se consola pensando no
fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que
fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele. Se acostuma para evitar
feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos
se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, se perde
de si mesma.
(Clarice Lispector)

Um comentário:

betina disse...

lindo poema